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Bits & Kids – liberdade perante a tecnologia digital

Retirado de O esquema

Em 14 de janeiro de 2015 às 11:21,


Publicado em 22.71.14 às 1:02pm.

Por: Gustavo Mini

Em outubro de 2011, o especialista em tecnologia Jean-Louis Constanza publicou no YouTube um vídeo de sua filha de 1 ano mexendo em um iPad e depois em uma revista. Nas cenas que duram apenas 1 minuto e 25 segundos, a menina passa as telas do iPad para o lado com os dedos e toca nos aplicativos querendo abri-los. O tablet, claro, responde a seus comandos desajeitados. Em seguida, ela tenta usar outros gestos para interagir com a revista, mas não obtém resultado algum: as fotos não passam, os elementos não abrem, enfim, nada de interativo acontece nas páginas impressas. O título do vídeo expõe a visão de seu autor - "uma revista é um iPad que não funciona".



Na época da postagem original, o vídeo se espalhou pela internet e até hoje continua angariando visualizações. Mais de 4 milhões e 300 mil pessoas já o assistiram no YouTube e a audiência crescente é seguida de comentários que se dividem entre os deslumbrados pela familiaridade das novas gerações com a tecnologia digital e os críticos do que seria uma exposição precoce de um bebê a uma tela interativa. No livro As Teorias da Cibercultura, o mestre, doutor e professor de comunicação da UFRGS e da PUC-RS Francisco Rüdiger classifica essas duas reações à tecnologia como “fáusticas” e “prometéicas”. Fáusticos são os que, num paralelo com a antiga lenda germânica do Dr. Fausto, consideram a tecnologia uma criação humana que pode se emancipar e nos levar à destruição. Os prometéicos, como no mito grego de Prometeu, acham que a tecnologia é a grande solução para todos nossos males e por isso qualquer sacrifício para obtê-la e mantê-la é válido. Fáusticos e prometéicos, segundo Rüdiger, concordam num ponto: enxergam a tecnologia como dona de "um poder autônomo, com uma dinâmica própria."


Não é pra menos que nós (junto com a maioria dos estudiosos) pensemos assim. Nos últimos dez ou quinze anos, fomos soterrados pela comunicação da indústria da tecnologia nos dizendo "agora você pode fazer o que quiser, na hora e lugar que escolher". A própria estrutura da tecnologia digital se baseia na ideia de uma conectividade ininterrupta e onipresente. Isso acabou estabelecendo que “é assim mesmo” que se usa um celular ou um computador: atendendo a todos os estímulos que eles lançam - a qualquer hora e em qualquer lugar que escolherem. Mesmo aqueles usuários que se opõe ao uso exagerado das novas tecnologias aceitam essa noção, colocando-se como bravos resistentes em um cenário dramático. Em alguns meios mais conectados, desconectar-se ganhou ares de heroísmo, o que acaba por confirmar a tese de que a conexão total é inevitável.


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Quando nos deslumbramos ou nos apavoramos com uma criança que mexe com desenvoltura em um iPad, perdemos uma perspectiva de liberdade e conferimos uma certa aura mágica e misteriosa à tecnologia digital. Não há dúvidas de que essas cenas sejam cativantes, mas a verdade é que precisamos mostrar para as crianças de uma vez por todas quem é que manda - não quem é que manda nelas, e sim nos aparelhos, sites e aplicativos que usamos diariamente. A maior parte deles é bem mais carente do que nossos filhos pois foram desenvolvidos de forma que precisamos lhes dar uma atenção tão constante que nem o mais indefeso dos bebês consegue rivalizar. É muito fácil nos deixarmos levar pelo mar de notificações e conteúdos que chegam sem parar via email, mensagens de texto, chats e feeds de redes sociais porque esses sistemas são construídos assim, para gerar fluxos e engajar nossa atenção 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano até o fim dos tempos.


Mas, apesar de parecer, eles não tem vida própria e é uma decisão particular de cada um de nós aprender a regular a entrada de notificações e conteúdos em nosso campo de interesse. Está literalmente nas nossas mãos decidir quando vamos ler ou assistir o que está chegando.

Essa automomia perante os estímulos é a habilidade crucial que precisamos desenvolver e ensinar a nossos filhos, porque o rio de informações digitais é ininterrupto e virtualmente infinito. Sempre haverá o que ler ou assistir e se você não coloca os limites, não espere que o Facebook canse de lhe avisar das fotos novas do seu amigo ou que o YouTube encerre as transmissões na madrugada como faziam as antigas emissoras de TV. Como diz o teórico de mídia americano Douglas Rushkoff, "programe ou seja programado". Quando seus filhos vêem você pular para pegar o celular a cada 30 segundos, não tenha dúvida de que eles vão crescer achando que isso é o que se faz com um celular. Portanto assuma o controle do seu uso digital, estabeleça seus próprios horários e métodos. Não seja escravo do fluxo de informações e você será um exemplo vivo de como lidar com os excessos induzidos pela tecnologia digital.


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No livro "Como viver na era digital", o escritor inglês Tom Chatfieldoferece uma dica mais prática e equilibrada: devemos aprender a tirar o melhor dos momentos conectados e dos momentos desconectados. Quando estamos conectados, é hora de pesquisar, coletar informações, obter diferentes visões, mergulhar na produção digital coletiva da humanidade. Quando estamos desconectados, é hora de analisar, filtrar e costurar o que absorvemos quando estávamos conectados. A alternância coordenada entre essas duas modalidades complementares é outra ferramenta valiosa que precisa ser incorporada à educação das crianças. Diz Chatfield: "Simplesmente depreciar um dos dois não serve para nada pois cada um representa um conjunto diferente de possibilidades para o pensamento e a ação. Em vez disso, devemos aprender a nos perguntar - e ensinar nossos filhos a se perguntarem - quais aspectos de uma tarefa, e do viver, são melhores servidos por cada um."


Esse é o detalhe que passa despercebido no vídeo de 4 milhões e 300 mil visualizações no qual um bebê confunde uma revista com um iPad. Encantador e desconcertante, ele é o retrato da nossa relação com a tecnologia digital. Estamos todos na primeira infância de um novo momento histórico, metendo os pés pelas mãos, perdidos com a função e o conteúdo de cada uma das ferramentas que estão à nossa disposição. A tecnologia digital nos oferece um tipo de autonomia às custas de outra. Pagamos pela magia com nossa atenção irrestrita e assim o "faça o que quiser na hora e lugar que escolher" acaba se tornando "faça o que estamos estimulando você a fazer o tempo todo em todo lugar". Existem muitas facetas - econômicas, políticas, artísticas e filosóficas - nessa questão, mas por hora basta lembrar que a chave para um uso produtivo das tecnologias digitais é não cedermos à ideia de que elas tem uma vida autônoma mas nós assumirmos nossa autonomia - ensinando às crianças e adolescentes a também serem autônomos e, em última instância, verdadeiramente livres.


***

Artigo publicado originalmente na edição 66 da revista Estilo.

Imagem 1: ilustração de Guilherme Dable para revista Estilo. Imagem 2: New Old Stock Imagem 3: tradução de lâmina de apresentação de Tom Chatfield para o projeto Sicredi Touch por DZ Estudio.


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